Neurociência: como ela ajuda a entender a aprendizagem
Neurociência: como ela ajuda a
entender a aprendizagem
Conclusões da área sobre como o
cérebro aprende trazem à tona questões tratadas por grandes teóricos da
Psicologia, como Piaget, Vygotsky, Wallon e Ausubel. Saiba como elas podem
enriquecer as discussões sobre o ensino
Por: Fernanda Salla
A emoção interfere no processo de
retenção de informação. É preciso motivação para aprender. A atenção é
fundamental na aprendizagem. O cérebro se modifica em contato com o meio
durante toda a vida. A formação da memória é mais efetiva quando a nova
informação é associada a um conhecimento prévio. Para você, essas afirmações
podem não ser inovadoras, seja por causa da sua experiência em sala, seja por
ter estudado Jean Piaget (1896-1980), Lev Vygotsky (1896- 1934), Henri Wallon
(1879-1962) e David Ausubel (1918-2008), a maioria da área da Psicologia
cognitiva. A novidade é que as conclusões são fruto de investigações
neurológicas recentes sobre o funcionamento cerebral.
"O que hoje a Neurociência
defende sobre o processo de aprendizagem se assemelha ao que os teóricos
mostravam por diferentes caminhos", diz a psicóloga Tania Beatriz Iwaszko
Marques, da Faculdade de Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul
(UFRGS), estudiosa de Piaget. O avanço das metodologias de pesquisa e da
tecnologia permitiu que novos estudos se tornassem possíveis. "Até o
século passado, apenas se intuía como o cérebro funcionava. Ganhamos
precisão", diz Lino de Macedo, do Instituto de Psicologia da Universidade
de São Paulo (USP), também piagetiano. Mas é preciso refletir antes de levar as
ideias neurocientíficas para a sala.
A Neurociência e a Psicologia
Cognitiva se ocupam de entender a aprendizagem, mas têm diferentes focos. A
primeira faz isso por meio de experimentos comportamentais e do uso de
aparelhos como os de ressonância magnética e de tomografia, que permitem
observar as alterações no cérebro durante o seu funcionamento. "A
Psicologia, sem desconsiderar o papel do cérebro, foca os significados, se
pautando em evidências indiretas para explicar como os indivíduos percebem,
interpretam e utilizam o conhecimento adquirido", explica Evelyse dos
Santos Lemos, pesquisadora do Instituto Oswaldo Cruz (Fiocruz), no Rio de
Janeiro, e especialista em aprendizagem significativa, campo de estudo de
Ausubel.
As duas áreas permitem entender
de forma abrangente o desenvolvimento da criança. "Ela é um ser em que
esses fatores são indissociáveis. Por isso, não pode ser vista por um único
viés", diz Claudia Lopes da Silva, psicóloga escolar da Secretaria de
Educação de São Bernardo do Campo e estudiosa de Vygotsky.
Sabemos, por exemplo, com base em
evidências neurocientíficas, que há uma correlação entre um ambiente rico e o
aumento das sinapses (conexões entre as células cerebrais). Mas quem define o
que é um meio estimulante para cada tipo de aprendizado? Quais devem ser as
intervenções para intensificar o efeito do meio? Como o aluno irá reagir?
"A Neurociência não fornece estratégias de ensino. Isso é trabalho da
Pedagogia, por meio das didáticas", diz Hamilton Haddad, do Departamento
de Fisiologia do Instituto de Biociências da USP. Como, então, o professor pode
enriquecer o processo de ensino e aprendizagem usando as contribuições da Neurociência?
Para o educador português António
Nóvoa, reitor da Universidade de Lisboa, responder à questão é o grande desafio
do século 21. "A estrutura educacional de hoje foi criada no fim do século
19. É preciso fazer um esforço para trazer ao campo pedagógico as inovações e
conclusões mais importantes dos últimos 20 anos na área da ciência e da
sociedade", diz.
Ao professor, cabe se alimentar
das informações que surgem, buscando fontes seguras, e não acreditar em
fórmulas para a sala de aula criadas sem embasamento científico. "A
Neurociência mostra que o desenvolvimento do cérebro decorre da integração
entre o corpo e o meio social. O educador precisa potencializar essa interação
por parte das crianças", afirma Laurinda Ramalho de Almeida, professora do
Programa de Estudos Pós-Graduados em Educação, da Pontifícia Universidade
Católica de São Paulo (PUC-SP), e especialista em Wallon.
Para tornar mais claro o diálogo
entre Neurociência, Psicologia e Pedagogia, NOVA ESCOLA mostra cinco conclusões
neurocientíficas ligadas à aprendizagem. Confira, nos comentários dos
especialistas, o que grandes teóricos dizem a respeito desses temas e reflita
sobre a relação deles com sua prática em sala.
Emoção
Ela interfere no processo de
retenção da informação
Os pesquisadores Larry Cahill e
James McGaugh, da Universidade da Califórnia, nos Estados Unidos, publicaram
nos anos 1990 os resultados de estudos em que foram mostradas duas séries de
imagens a pessoas. Uma tinha um caráter emocional e a outra era neutra. O grupo
teve uma recordação maior das emotivas. Por meio de um tomógrafo, foi observada
a relação entre a ativação da amígdala (parte importante do sistema emotivo do
cérebro) e o processo de formação da memória. "Quanto mais emoção contenha
determinado evento, mais ele será gravado no cérebro", diz Iván Izquierdo,
médico, neurologista e coordenador do Centro de Memória da Pontifícia
Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS).
A emoção, para Piaget
"O psicólogo valoriza o
termo afetividade, em vez de emoção, e diz que ela influencia positiva ou
negativamente os processos de aprendizagem, acelerando ou atrasando o
desenvolvimento intelectual."
- Lino de Macedo
A emoção, para Vygotsky
"Para compreender o
funcionamento cognitivo (razão ou inteligência), é preciso entender o aspecto
emocional. Os dois processos são uma unidade: o afeto interfere na cognição, e
vice-versa. A própria motivação para aprender está associada a uma base
afetiva."
- Claudia Lopes da Silva
A emoção, para Wallon
"O pesquisador defende que a
pessoa é resultado da integração entre afetividade, cognição e movimento. O que
é conquistado em um desses conjuntos interfere nos demais. O afetivo, por meio
de emoções, sentimentos e paixões, sinaliza como o mundo interno e externo nos
afeta. Para Wallon, que estudou a afetividade geneticamente, os acontecimentos
à nossa volta estimulam tanto os movimentos do corpo quanto a atividade mental,
interferindo no desenvolvimento."
- Laurinda Ramalho de Almeida
Implicações na Educação
O professor, ao observar as
emoções dos estudantes, pode ter pistas de como o meio escolar os afeta: se
está instigando emocionalmente ou causando apatia por ser desestimulante. Dessa
forma, consegue reverter um quadro negativo, que não favorece a aprendizagem.
Motivação
Ela é necessária para aprender
"Da mesma forma que sem fome
não apreendemos a comer e sem sede não aprendemos a beber água, sem motivação
não conseguimos aprender", afirma Iván Izquierdo. Estudos comprovam que no
cérebro existe um sistema dedicado à motivação e à recompensa. Quando o sujeito
é afetado positivamente por algo, a região responsável pelos centros de prazer
produz uma substância chamada dopamina. A ativação desses centros gera bem-estar,
que mobiliza a atenção da pessoa e reforça o comportamento dela em relação ao
objeto que a afetou. A neurologista Suzana Herculano-Houzel, autora do livro
Fique de Bem com Seu Cérebro (208 págs., Ed. Sextante, tel. 21/2538-4100, 19,90
reais), explica que tarefas muito difíceis desmotivam e deixam o cérebro
frustrado, sem obter prazer do sistema de recompensa. Por isso são abandonadas,
o que também ocorre com as fáceis.
A motivação, para Piaget
"É a procura por respostas
quando a pessoa está diante de uma situação que ainda não consegue resolver. A
aprendizagem ocorre na relação entre o que ela sabe e o que o meio físico e
social oferece. Sem desafios, não há por que buscar soluções. Por outro lado,
se a questão for distante do que se sabe, não são possíveis novas
sínteses."
- Tania Beatriz Iwaszko Marques
A motivação, para Vygotsky
"A cognição tem origem na
motivação. Mas ela não brota espontaneamente, como se existissem algumas
crianças com vontade - e naturalmente motivadas - e outras sem. Esse impulso
para agir em direção a algo é também culturalmente modulado. O sujeito aprende
a direcioná-lo para aquilo que quer, como estudar."
- Claudia Lopes da Silva
A motivação, para Ausubel
Essa disposição está diretamente
relacionada às emoções suscitadas pelo contexto. Pela perspectiva de Ausubel, o
prazer, mais do que estar na situação de ensino ou mediação, pode fazer parte
do próprio ato de aprender. Trata-se da sensação boa que a pessoa tem quando se
percebe capaz de explicar certo fenômeno ou de vencer um desafio usando apenas
o que já sabe. Com isso, acaba motivada para continuar aprendendo sobre o
tema."
- Evelyse dos Santos Lemos
Implicações na Educação
A escola deve ser um espaço que
motive e não somente que se ocupe em transmitir conteúdos. Para que isso
ocorra, o professor precisa propor atividades que os alunos tenham condições de
realizar e que despertem a curiosidade deles e os faça avançar. É necessário
levá-los a enfrentar desafios, a fazer perguntas e procurar respostas.
Atenção
Ela é fundamental para a
percepção e para a aprendizagem
Pesquisas comportamentais e neurofisiológicas
mostram que o sistema nervoso central só processa aquilo a que está atento. Em
um estudo de Gilberto Fernando Xavier e André Frazão Helene, do Instituto de
Biociências da USP, publicado em 2006 na revista Neuroscience, um grupo de
pessoas passou por um teste que avaliava o desenvolvimento da habilidade de
leitura de palavras espelhadas. Uma parte delas treinou escrever, de maneira
imaginária, palavras invertidas. Outra pôde ler termos desse tipo. Depois,
ambas conseguiram ler com rapidez palavras espelhadas criadas pelos
pesquisadores. Um terceiro grupo, enquanto treinava a leitura e a escrita de
termos espelhados, realizou outra tarefa de memorização visual. Tanto a
memorização quanto a aquisição da habilidade de leitura invertida ficaram prejudicadas.
Assim, comprovaram que, se o desvio de atenção é significativo, a aquisição de
habilidade e a memorização sofrem prejuízo.
A atenção, para Piaget
"De acordo com o psicólogo,
prestamos atenção porque entendemos, ou seja, porque o que está sendo
apresentado tem significado e representa uma novidade. Se há um desafio e se
for possível estabelecer uma relação entre esse elemento novo e o que já se
sabe, a atenção é despertada."
- Tania Beatriz Iwaszko Marques
A atenção, para Ausubel
"A mente é seletiva. Segundo
Ausubel, só reconhecemos nos fenômenos que acontecem a nossa volta aquilo que o
nosso conhecimento prévio nos permite perceber. Não hesitamos, por exemplo, em
interromper uma atividade quando sentimos um cheiro de fumaça no ambiente.
Conhecer padrões é fundamental para se dedicar, agir e aprender sobre o que
importa."
- Evelyse dos Santos Lemos
A atenção, para Vygotsky
"No decorrer do processo de
desenvolvimento, a atenção passa de automática para dirigida, sendo orientada de
forma intencional e estreitamente relacionada com o pensamento. Ou seja, ela
sofre influência dos símbolos de um meio cultural, que acaba por orientá-la.
Atenção e memória se desenvolvem de modo interdependente, num processo de
progressiva intelectualização."
- Claudia Lopes da Silva
Implicações na Educação
Falta de atenção não é sinônimo
de indisciplina ou de desinteresse por parte das crianças. Ela pode ser
decorrente de um meio desestimulante ou de situações inadequadas à
aprendizagem. Para evitar isso, o professor deve focar a interação entre ele, o
saber e o aluno, refletindo sobre as atividades propostas e modificando-as se
necessário.
Plasticidade cerebral
O cérebro se modifica em contato
com o meio durante toda a vida
A interferência do ambiente no
sistema nervoso causa mudanças anatômicas e funcionais no cérebro. Assim, a
quantidade de neurônios e as conexões entre eles (sinapses) mudam dependendo
das experiências pelas quais se passa. Antes, acreditava-se que as sinapses
formadas na infância permaneciam imutáveis pelo resto da vida, mas há indícios
de que não é assim. Nos anos 1980, um estudo pioneiro do neurocientista
norte-americano Michael Merzenich, da Universidade da Califórnia, nos Estados
Unidos, demonstrou que o cérebro de macacos adultos se modificava depois da
amputação de um dos dedos da mão. A perda do membro provocava atrofia dos
neurônios da região responsável pelo controle motor do dedo amputado. Porém ele
observou também que essa área acabava sendo ocupada pelos neurônios responsáveis
pelo movimento do dedo ao lado.
A influência do meio, para
Vygotsky
"A cognição se constitui
pelas experiências sociais, e a importância do ambiente nesse enfoque é
fundamental. À medida que aprende, a criança - e seu cérebro - se desenvolve. A
ideia é oposta à da maturação, de acordo com a qual se deve aguardar que ela
atinja uma prontidão para poder ensiná-la."
- Claudia Lopes da Silva
A influência do meio, para Wallon
"A relação complementar e
recíproca entre os fatores orgânicos e socioculturais está presente em todas as
análises de Wallon. Para ele, a criança nasce com um equipamento biológico, mas
vai se constituir no meio social, que tanto pode favorecer seu desenvolvimento
como tolhê-lo."
- Laurinda Ramalho de Almeida
A influência do meio, para Piaget
"Para o estímulo provocar
certa resposta, é necessário que o indivíduo e seu organismo sejam capazes de
fornecê-la. Por isso, não basta ter um meio provocativo se a pessoa não
participar dele ou, como complementaria o teórico, se ela for incapaz de se
sensibilizar com os estímulos oferecidos e reagir a eles. A aprendizagem,
portanto, não é a mesma para todos, e também difere de acordo com os níveis de
desenvolvimento de cada um, pois há domínios exigidos para que seja possível
construir determinados conhecimentos."
- Lino de Macedo
Implicações na Educação
O aluno deve ser ativo em suas
aprendizagens, mas cabe ao professor propor, orientar e oferecer condições para
que ele exerça suas potencialidades. Para isso, deve conhecê-lo bem, assim como
o contexto em que vive e a relação dele com a natureza do tema a ser aprendido.
Memória
Ela é mais efetiva na associação
com um conhecimento já adquirido
A ativação de circuitos ou redes
neurais se dá em sua maior parte por associação: uma rede é ativada por outra e
assim sucessivamente. Quanto mais frequentemente isso acontece, mais estáveis e
fortes se tornam as conexões sinápticas e mais fácil é a recuperação da memória.
Isso se dá por repetição da informação ou, de forma mais eficaz, pela
associação do novo dado com conhecimentos já desenvolvidos. "Podemos
simplesmente decorar uma nova informação, mas o registro se tornará mais forte
se procurarmos criar ativamente vínculos e relações daquele conteúdo com o que
já está armazenado em nosso arquivo de conhecimentos", afirmam os médicos
e doutores em Ciência do Instituto de Ciências Biomédicas da Universidade
Federal de Minas Gerais (UFMG) Ramon M. Cosenza e Leonor B. Guerra no livro
Neurociência e Educação: Como o Cérebro Aprende (151 págs., Ed. Artmed, tel.
0800-703-3444, 44 reais).
A memória, para Vygotsky
"Uma criança pequena
constrói memórias por imagens, associando uma a outra. No decorrer do
desenvolvimento, ela passa a fazer essa relação conceitualmente, pela
influência e pelo domínio da linguagem - o componente cultural mais importante.
Com isso, passa de uma memória mais apoiada nos sentidos para outra mais
escorada na linguagem. Portanto, a memória relacionada às aprendizagens
escolares é uma função psicológica que vai se definindo durante o
desenvolvimento."
- Claudia Lopes da Silva
A memória, para Ausubel
"Aprendemos com base no que
já sabemos. Essa premissa é central na Teoria da Aprendizagem Significativa, de
Ausubel. É preciso diferenciar memória de aprendizagem significativa. A
primeira é a capacidade de lembrar algo. Já a segunda envolve usar o saber
prévio em novas situações - um processo pessoal e intencional de construção de
significados com base na relação com o meio (social e físico)."
- Evelyse dos Santos Lemos
A memória, para Wallon
"O pressuposto da
psicogenética walloniana é que somos seres integrados: afetividade, cognição e
movimento. Portanto, informações e acontecimentos que nos afetam e fazem
sentido para nós ficam retidos na memória com mais facilidade. Como a construção
de sentido passa pela afetividade, é difícil reter algo novo quando ele não nos
afeta."
- Laurinda Ramalho de Almeida
Implicações na Educação
Aprender não é só memorizar
informações. É preciso saber relacioná-las, ressignificá-las e refletir sobre
elas. É tarefa do professor, então, apresentar bons pontos de ancoragem, para
que os conteúdos sejam aprendidos e fiquem na memória, e dar condições para que
o aluno construa sentido sobre o que está vendo em sala.
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